Porto de
Vitória versus catraeiros
Por Clara Luiza Miranda
Os catraeiros
são barqueiros que conduzem catraias ‑ pequenas embarcações – transportando
passageiros e mercadorias de pequeno porte. Eles estão na Baia de Vitória desde
a colonização portuguesa, o porto também sempre esteve por ali. Há noticias que
nos anos de 1630, o porto era um sucesso levando a produção de açúcar de
cristãos novos. Sabe-se que no tempo da província os barqueiros e os trapiches asseguravam
a sobrevivência da pequena produção agrícola e de outros gêneros comerciáveis
da “Grande Vitória”. Os catraeiros estavam na base dessa sobrevivência e conviviam
harmoniosamente com o porto. O Cais do Imperador alinhado à escadaria do
Palácio Anchieta era um dos pontos de embarque e desembarque de passageiros
mais movimentados; hoje faz parte do cais comercial.
Os catraeiros
consistiam praticamente na única forma de transporte e translado entre Vila
Velha, Cariacica e Vitória. Pelos relatos dos antigos habitantes e viajantes era
intensa a circulação seja da produção seja da população através da Baia de
Vitória. Com a inauguração da Estação Ferroviária Leopoldina em 1895 e da
Estação Pedro Nolasco em 1905 foram os catraeiros que conduziram passageiros e
suas bagagens.
No início do
Século XX, a elite capixaba quis se desvencilhar do passado colonial, a
arquitetura e a urbanização colonial foram postos abaixo. O engenheiro Serafim Derenzi dizia que Vitória foi “tipicamente
uma cidade colonial portuguesa (...), que [teimava] em ignorar os princípios da
arte de construir (...) e de viver. A geometria só apareceu com a república”.
A inclusão do
Espírito Santo no mapa do desenvolvimento brasileiro ocorreu lentamente, a
infra-estrutura desse progresso deveu-se à institucionalização do porto em 1906,
a sua modernização 1924-40, a construção das pontes metálicas (1927-28); aos aterros
sucessivos: 1906-1940 (porto comercial), 1951-54 (Esplanada Capixaba), anos de
1970 (Terminal Flexibrás e Vila Rubim). Contudo, relativamente ao porto
fecharam a vista e a fruição coletiva ao mar de metade da frente aquática da
região central de Vitória.
Os catrareiros,
que antes ocupavam toda frente aquática portuária, reduziram-se a ocupar alguns
pontos em Vitória e em Vila Velha. Eles ainda conviveram e sobreviveram ao
extinto transporte hidroviário entre os anos de 1980 e 1990. Há alguns anos
utilizam instalações precárias como atracadouro, embarque e desembarque. Até
que em 2011-12, restaram espremidos em Paul entre o porto e novas instalações
da Petrobrás, e no momento em Vitória, foram deslocados do ponto que ocupavam
há cerca de 60 anos para um local que não agrada nem catraeiros nem seus 600
passageiros diários.
A autoridade
Portuária do Porto de Vitória divulga desde 2010 (informações do site da Codesa
‑ Companhia Docas do Espírito Santo)
projeto de revitalização do Cais Comercial de Vitória e ao
alargamento/contenção de berços com expansão sobre a baía por 22 metros e na
Avenida Beira Mar incluindo mais cem metros de comprimento em direção ao
Edifício Fabio Ruschi. A
autoridade Portuária anuncia que o “comprimento do cais comercial de Vitória
passará dos atuais 356 metros para 456 metros. Além disso, o Porto ganhará novo
calado, saindo dos atuais 7,7m para 12,5 m. (...). No tocante à área
operacional, o pátio de estocagem e manuseio de cargas passará de 26.000 m²
para 40.000 m². (...) a obra será executada pela Carioca Cristiani Nielsen
Engenharia”. Citamos a empresa, pois passa a ser um ator dessa história.
Esse
avanço de 100 metros do cais comercial inclui o espaço que os catraeiros vêm
ocupando desde os anos 1940-50. Segundo informação da própria Autoridade
Portuária como condicionante do IEMA (Instituto Estadual de Meio Ambiente e
Recursos Hídricos) e solicitação da Prefeitura Municipal de Vitória. Descreve-se
a decisão do IEMA que se refere as obras de revitalização do Cais Comercial de
Vitória, citando excerto texto assinado por José Carlos Mattedi – Assessoria de
comunicação / ASSECS.
“O
projeto do deck atende a condicionante nº 07 da licença de instalação nº
045/2010 concedida pelo IEMA”. A condicionante determina que a Codesa apresente o projeto descritivo
e executivo da estrutura do novo deck, definido em conjunto com a PMV, e
“implante-o antes do início da desmobilização do antigo ponto dos catraieiros”.
O novo deck
para os catraieiros sob responsabilidade da Codesa consistiria numa nova
estrutura para os catraieiros com 80 metros quadrados, e ofereceria “mais
conforto e segurança no embarque e desembarque de passageiros”. De acordo, com
o site da empresa, este deck seria construído em madeira e sobre um flutuante
para adequação as condições da maré. Segundo esse informe da Codesa: “a
instalação permitirá, por exemplo, acessibilidade aos deficientes físicos, que
o ponto atual dos catraieiros não oferece. Assim, além de conforto e melhora no
acesso, a estrutura possibilitará maior segurança aos usuários”.
A Codesa
expressa ainda que: “O novo deck será instalado cerca de 40 metros da estrutura
atual, ficando o embarque de passageiros em frente à Praça Pio XII, com os
barcos ancorando alguns metros em direção ao norte.”
As obras foram
realizadas pela empresa Carioca e o deck entregue não corresponde de nenhum
modo à descrição acima. É metálica, está aquém das dimensões, não obedece as
especificações materiais, estruturais e arquitetônicas prometidas, também não
oferece conforto aos passageiros. A travessia que antes era de 5 minutos (entre
Vitória e Paul) se tornou mais lenta e perigosa para os passageiros e os 17
barcos. Com razão, os catraeiros se sentem muito prejudicados, sentem-se
preteridos. Seus passageiros são garantia de seu sustento, tendem a diminuir
dentro dessas novas condições.
Compreendemos
que as obras no Porto de Vitória representarão uma sobrevida operacional e
comercial, isso é sem dúvida positivo, mas tem que se suceder sem que haja
prejuízo social. Uma disputa entre o porto e os catraeiros é desproporcional em
termos de relação de força econômica.
Na nossa
história os catraeiros tiveram que ceder todo espaço que antes ocupavam as
atividades portuárias produtivas modernas. Os catraeiros são “cantados em prova
e verso” pelos defensores da “identidade capixaba”. Sua atividade profissional
é, inclusive, reconhecida como “bem imaterial” pelas instituições culturais
estaduais: a Associação Estadual de Arquivologistas reuniu documentos para dar
entrada para tombamento da atividade dos catraeiros no IPHAN ‑ Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, com apoio da Prefeitura de Vitória.
É uma ação cultural importante, mas poderá ser tarde demais para os catraeiros
e suas famílias, cujas necessidades são materiais e imediatas.
O episódio
vivido pelos catraeiros pode ser situada como mais um, dentre tantos, desde a
instalação das grandes empresas no estado, em que as comunidades locais vulneráveis
são relegadas, colocadas em situação de precariedade: índios convertidos em
aculturados; quilombolas e pequenos agricultores em sem-terra e sem teto; e
trabalhadores vernaculares em desempregados.
Os catraeiros
têm estado na Baía de Vitória em toda sua história. Não aceitamos o argumento do
custo do progresso, das promessas de futuro. Como diz Simone Weil: o futuro não
dá nada, nós é que o construímos. Decisões como esta levam questionar a
qualidade de governança no que se refere ao modus operandi das políticas
públicas, do modo como as decisões são deliberadas, ainda, no limite, a
legitimidade das decisões sobre o bem comum.
Além de nos
posicionar em favor de um maior respeito aos catraeiros, a nossa intenção é ressaltar
que os cidadãos usuários de seu bom serviço, também se sentem prejudicados,
desse que é o único remanescente de transporte hidroviário na Baía de Vitória.
E que se constitui numa forma de
transporte alternativo, não poluente; de custo acessível, além de tudo, rápido.
Esta é uma forma de transporte secular, que cumpre uma função que o Estado
ignora. A implantação de um sistema de transporte aquaviário em cidades com
potencial para desenvolver este sistema, a Baía de Vitória é um desses casos.
Isso constitui uma recomendação do Ministério das Cidades e do Fórum Nacional
pela Reforma Urbana; lembramos que transporte é um serviço essencial e um
direito.
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