segunda-feira, 2 de abril de 2012

Porto de Vitória versus catraeiros


Porto de Vitória versus catraeiros
Por Clara Luiza Miranda

Os catraeiros são barqueiros que conduzem catraias ‑ pequenas embarcações – transportando passageiros e mercadorias de pequeno porte. Eles estão na Baia de Vitória desde a colonização portuguesa, o porto também sempre esteve por ali. Há noticias que nos anos de 1630, o porto era um sucesso levando a produção de açúcar de cristãos novos. Sabe-se que no tempo da província os barqueiros e os trapiches asseguravam a sobrevivência da pequena produção agrícola e de outros gêneros comerciáveis da “Grande Vitória”. Os catraeiros estavam na base dessa sobrevivência e conviviam harmoniosamente com o porto. O Cais do Imperador alinhado à escadaria do Palácio Anchieta era um dos pontos de embarque e desembarque de passageiros mais movimentados; hoje faz parte do cais comercial.
Os catraeiros consistiam praticamente na única forma de transporte e translado entre Vila Velha, Cariacica e Vitória. Pelos relatos dos antigos habitantes e viajantes era intensa a circulação seja da produção seja da população através da Baia de Vitória. Com a inauguração da Estação Ferroviária Leopoldina em 1895 e da Estação Pedro Nolasco em 1905 foram os catraeiros que conduziram passageiros e suas bagagens.
No início do Século XX, a elite capixaba quis se desvencilhar do passado colonial, a arquitetura e a urbanização colonial foram postos abaixo. O engenheiro Serafim Derenzi dizia que Vitória foi “tipicamente uma cidade colonial portuguesa (...), que [teimava] em ignorar os princípios da arte de construir (...) e de viver. A geometria só apareceu com a república”.
A inclusão do Espírito Santo no mapa do desenvolvimento brasileiro ocorreu lentamente, a infra-estrutura desse progresso deveu-se à institucionalização do porto em 1906, a sua modernização 1924-40, a construção das pontes metálicas (1927-28); aos aterros sucessivos: 1906-1940 (porto comercial), 1951-54 (Esplanada Capixaba), anos de 1970 (Terminal Flexibrás e Vila Rubim). Contudo, relativamente ao porto fecharam a vista e a fruição coletiva ao mar de metade da frente aquática da região central de Vitória.
Os catrareiros, que antes ocupavam toda frente aquática portuária, reduziram-se a ocupar alguns pontos em Vitória e em Vila Velha. Eles ainda conviveram e sobreviveram ao extinto transporte hidroviário entre os anos de 1980 e 1990. Há alguns anos utilizam instalações precárias como atracadouro, embarque e desembarque. Até que em 2011-12, restaram espremidos em Paul entre o porto e novas instalações da Petrobrás, e no momento em Vitória, foram deslocados do ponto que ocupavam há cerca de 60 anos para um local que não agrada nem catraeiros nem seus 600 passageiros diários.
A autoridade Portuária do Porto de Vitória divulga desde 2010 (informações do site da Codesa ‑ Companhia Docas do Espírito Santo) projeto de revitalização do Cais Comercial de Vitória e ao alargamento/contenção de berços com expansão sobre a baía por 22 metros e na Avenida Beira Mar incluindo mais cem metros de comprimento em direção ao Edifício Fabio Ruschi. A autoridade Portuária anuncia que o “comprimento do cais comercial de Vitória passará dos atuais 356 metros para 456 metros. Além disso, o Porto ganhará novo calado, saindo dos atuais 7,7m para 12,5 m. (...). No tocante à área operacional, o pátio de estocagem e manuseio de cargas passará de 26.000 m² para 40.000 m². (...) a obra será executada pela Carioca Cristiani Nielsen Engenharia”. Citamos a empresa, pois passa a ser um ator dessa história.
Esse avanço de 100 metros do cais comercial inclui o espaço que os catraeiros vêm ocupando desde os anos 1940-50. Segundo informação da própria Autoridade Portuária como condicionante do IEMA (Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos) e solicitação da Prefeitura Municipal de Vitória. Descreve-se a decisão do IEMA que se refere as obras de revitalização do Cais Comercial de Vitória, citando excerto texto assinado por José Carlos Mattedi – Assessoria de comunicação / ASSECS.
“O projeto do deck atende a condicionante nº 07 da licença de instalação nº 045/2010 concedida pelo IEMA”. A condicionante determina que a Codesa apresente o projeto descritivo e executivo da estrutura do novo deck, definido em conjunto com a PMV, e “implante-o antes do início da desmobilização do antigo ponto dos catraieiros”.
O novo deck para os catraieiros sob responsabilidade da Codesa consistiria numa nova estrutura para os catraieiros com 80 metros quadrados, e ofereceria “mais conforto e segurança no embarque e desembarque de passageiros”. De acordo, com o site da empresa, este deck seria construído em madeira e sobre um flutuante para adequação as condições da maré. Segundo esse informe da Codesa: “a instalação permitirá, por exemplo, acessibilidade aos deficientes físicos, que o ponto atual dos catraieiros não oferece. Assim, além de conforto e melhora no acesso, a estrutura possibilitará maior segurança aos usuários”.
A Codesa expressa ainda que: “O novo deck será instalado cerca de 40 metros da estrutura atual, ficando o embarque de passageiros em frente à Praça Pio XII, com os barcos ancorando alguns metros em direção ao norte.”
As obras foram realizadas pela empresa Carioca e o deck entregue não corresponde de nenhum modo à descrição acima. É metálica, está aquém das dimensões, não obedece as especificações materiais, estruturais e arquitetônicas prometidas, também não oferece conforto aos passageiros. A travessia que antes era de 5 minutos (entre Vitória e Paul) se tornou mais lenta e perigosa para os passageiros e os 17 barcos. Com razão, os catraeiros se sentem muito prejudicados, sentem-se preteridos. Seus passageiros são garantia de seu sustento, tendem a diminuir dentro dessas novas condições.
Compreendemos que as obras no Porto de Vitória representarão uma sobrevida operacional e comercial, isso é sem dúvida positivo, mas tem que se suceder sem que haja prejuízo social. Uma disputa entre o porto e os catraeiros é desproporcional em termos de relação de força econômica.
Na nossa história os catraeiros tiveram que ceder todo espaço que antes ocupavam as atividades portuárias produtivas modernas. Os catraeiros são “cantados em prova e verso” pelos defensores da “identidade capixaba”. Sua atividade profissional é, inclusive, reconhecida como “bem imaterial” pelas instituições culturais estaduais: a Associação Estadual de Arquivologistas reuniu documentos para dar entrada para tombamento da atividade dos catraeiros no IPHAN ‑ Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, com apoio da Prefeitura de Vitória. É uma ação cultural importante, mas poderá ser tarde demais para os catraeiros e suas famílias, cujas necessidades são materiais e imediatas.
O episódio vivido pelos catraeiros pode ser situada como mais um, dentre tantos, desde a instalação das grandes empresas no estado, em que as comunidades locais vulneráveis são relegadas, colocadas em situação de precariedade: índios convertidos em aculturados; quilombolas e pequenos agricultores em sem-terra e sem teto; e trabalhadores vernaculares em desempregados.
Os catraeiros têm estado na Baía de Vitória em toda sua história. Não aceitamos o argumento do custo do progresso, das promessas de futuro. Como diz Simone Weil: o futuro não dá nada, nós é que o construímos. Decisões como esta levam questionar a qualidade de governança no que se refere ao modus operandi das políticas públicas, do modo como as decisões são deliberadas, ainda, no limite, a legitimidade das decisões sobre o bem comum.
Além de nos posicionar em favor de um maior respeito aos catraeiros, a nossa intenção é ressaltar que os cidadãos usuários de seu bom serviço, também se sentem prejudicados, desse que é o único remanescente de transporte hidroviário na Baía de Vitória. E que se constitui numa forma de transporte alternativo, não poluente; de custo acessível, além de tudo, rápido. Esta é uma forma de transporte secular, que cumpre uma função que o Estado ignora. A implantação de um sistema de transporte aquaviário em cidades com potencial para desenvolver este sistema, a Baía de Vitória é um desses casos. Isso constitui uma recomendação do Ministério das Cidades e do Fórum Nacional pela Reforma Urbana; lembramos que transporte é um serviço essencial e um direito.

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